Exegese Literária acerca
do livro de poesia “Em Silêncio” de Carla Furtado Ribeiro, Chiado Editora, Lisboa, 2013.
Em silêncio
é o título que marca a estreia fulgurante e muito promissora desta jovem
poetisa, que é simultaneamente mulher de letras e de leis.
Mulher em quem desde cedo despontou o dom poético; facto comprovável no primeiro poema, escrito em 1991, com apenas treze anos de idade, e que o pudor artístico deixou engavetado e adiado até agora. Nessa belíssima composição, exprimia o seu encantamento pela Arte por modos notavelmente auspiciosos e de uma maturidade intelectual precoce, como se pode comprovar nos seguintes versos:
Mulher em quem desde cedo despontou o dom poético; facto comprovável no primeiro poema, escrito em 1991, com apenas treze anos de idade, e que o pudor artístico deixou engavetado e adiado até agora. Nessa belíssima composição, exprimia o seu encantamento pela Arte por modos notavelmente auspiciosos e de uma maturidade intelectual precoce, como se pode comprovar nos seguintes versos:
No
trono da minh’alma se eleva…
Sob
o ceptro do seu encantamento repouso…
E
na infinitude desse olhar dilacerante,
Embevecida
me detenho:
-
És Arte!
Sou
diletante.
Toda a atividade
poética posterior a este “batismo atónito”, para usar uma expressão de Herberto
Helder, se processou em silêncio e discrição, até ao momento recente em que a
poetisa decidiu abrir, usando palavras suas, a flor da poesia, como se pode ler num poema de cariz autobiográfico
e metapoético:
Morriam
os poemas dentro de mim
Como
estrelas caídas no íntimo da noite
E
eu – perfume crepuscular – era assim
Como
a nudez sagrada de um altar
Despido
e despojado preambular
Da
provocadora simplicidade de Deus
Morriam
os poemas nasciam os silêncios
Como
pétalas adiadas da flor da poesia
Que
em mim morria
[…]
Na mesma linha segue o
poema em tons de prefácio que serve de pórtico à obra:
Brotam
de mim palavras adiadas
Que
eu preciso de soltar e à vida dar
Livres
fossem as palavras
Que
de mim vou apartar
Como
garças
Que
voassem
Da
minh’alma
A
plissar
Palavras que no poema
seguinte são graciosamente comparadas a flores:
Como
flores se abrem
as
palavras ao sol
e
ao esvaecer se fecham
reclinando
seus acentos de pétalas.
Pois
bem, é este silêncio criativo, emoldurado em parêntesis retos, que hoje aqui
queremos quebrar, para que a entrada desta excecional poetisa no meio artístico
português seja mais eloquente e a sua poesia menos silente. Estes longos anos
de casulo, antes de trazer os seus versos à luz do dia, foram tempo de maturação
psicológica e intelectual, tempo de inculturação e de aperfeiçoamento da
técnica, de modo que o primeiro livro de poesia que Carla Furtado Ribeiro aqui
nos apresenta revela uma autora madura, culta, detentora de um notável estro e
de um sentido estético-poético extremamente apurado. A sua obra impressiona pela
suavidade e pela luminosidade, num tempo em que a alma poética tende para
cromatismos mais carrancudos e formas disformes. Há um efetivo prazer em ler
esta poesia, que se retira da musicalidade encantatória dos versos, das
harmoniosas e engenhosas alquimias rítmicas, fónicas, semânticas e lexicais, das
surpreendentes nervosidades metafóricas, da primorosa seleção vocabular, da profundidade
e complexidade das ideias, do fulgor e limpidez das texturas cromáticas. Uma
poesia enxuta e solar, que prende o real e nos prende. A escrita, embora
capciosa, como convém ao artifício poético, é fluida, dúctil, grácil, a cavalo
entre a tradição e a inovação: quer bebendo na herança poética de um Almeida
Garrett, de um Fernando Pessoa, de uma Sophia de Melo Breyner, de um Rui Belo, ou
mesmo de um Herberto Helder, quer instaurando com consistência um modo idiossincrásico
e uma marca autoral genuína e convincente. Podemos dizer que a sua poesia é
leve, mas nunca ligeira. Leve na palavra, leve na estrutura, leve no movimento,
mas densa e bem assente em ideias de timbre existencial, metapoético e
espiritual.
O
silêncio, como tema mais glosado, recebe honras de título e de epígrafe. Surge
em consonância com a noite, esse tempo que já em Álvaro de Campos era oportuno
para a escrita. Para Carla Ribeiro é também tempo de súplica, como se depreende
dos seguintes versos:
Sobre
o silêncio côncavo da noite…
Em
que as “coisas” se revelam
Originais
e despojadas
Deslumbrando
vocábulos em sílabas de súplica:
-
Que uma só palavra cristalize
Intacta
a sua essência.
Noutro lugar, o
silêncio é apresentado como berço das palavras:
As
palavras mergulham
No
silêncio o seu sentido
[…]
Que
seria da palavra
Sem
o seu berço de silêncio?
Noutros passos, há
ainda o silêncio das manhãs enfeitiçadas
por luz; ou o silêncio dos nenúfares
a vogar, onde se expressa a íntima comunhão deste com a beleza, ambos
selados pela inefabilidade de que a poesia se alimenta: Não vês que eu não tenho respostas?/ Por isso me nutro de beleza e
silêncio. Três poemas versam integralmente sobre a mesma temática. Num
soneto, cujo título, é simplesmente Silêncio,
o sujeito poético adota um tom confessional para nos descrever o ambiente da
génese poética e da busca da flor mais
fina do silêncio, identificado com o Omnisciente,
aquele em quem correm seivas invisíveis
e nos braços de quem o sujeito poético se deleita, no silêncio dos dias imperfeito.
Na composição Nem todos os silêncios, especifica-o,
separando-o de outros, porventura mais comuns e menos positivos:
Nem
todos os silêncios são de esperas
Há
silêncios taciturnos e de feras perscrutadoras
Há
silêncios de censura e repressão
Há
silêncios que calam a desdita
Há
silêncios de pena e de traição
Mas,
eu amo o silêncio em gestação
De
tudo o que é tecido em mansidão
De
arte transbordante, e de oração
[…]
Amo
o silêncio que invita à jornada
Da
busca da humana e única palavra
Que
diga tudo quanto há para se dizer
Essa
palavra essencial e despojada
–
a Magna palavra –
Com
a qual se traduza todo o Ser…
Por fim, Em silêncio, o poema que fecha a obra e
a abre ao mundo; um desfecho conciso, para expressar o silencioso apaziguamento,
depois de cumprida a buliçosa missão poética:
Em
silêncio tudo está pacificado.
Só
o vento,
De
folha em folha deambula,
Como
um anjo alado…
Sejamos nós, leitores,
estes anjos alados deambulando de página em página, sorvendo o néctar poético
que preenche as páginas deste livro. Essa é a nossa forma de voarmos ao lado da
poetisa, que a si mesma se compara à ave que se alça em voos poéticos: Nos ninhos solitários / Dos humanos
pássaros/ Sempre uma cria /Alçará o seu voo; unidos a ela na missão que a
mesma outorga à poesia: resistir em silêncio à pravidade do metal, à novela
das sete, ao reality show das vinte e
uma, restituindo ao mundo a desprezada ciência; lutando, a seu lado,
contra a sedutora vulgaridade que infeta o homem prosaico, título de um
delicioso sarcasmo poético, que ousamos transcrever na íntegra:
O
riso ternura dos teus lábios aceno
O
perfume cristal do teu pescoço gazela
O
cálice tempo que a tua força sustenta
Por
sobre a mesa
A
face branca do teu rosto luar
O
vibrar filigrana do teu olhar crepúsculo
A
gravata atadura que o teu colarinho prende
Sobre
a camisa
O movimento distinto dos teus ossos
alabastro
A cadência musical da tua respiração
pássaro
Os botões de punho ouro com que
distingues
A
tua prosaica existência
O
domesticado ondulante do teu cabelo mar
A
ajeitada selva da tua barba amazónia
O
aftershave subjecticida, auto-repelente com que abafas
A
tua identidade
O
sonho defraudado da tua juventude bandeira
A
lágrima chuva dos teus olhos céu
O
coração puído que te recorda a distância
De
ti próprio
Inúmeras rotas
hermenêuticas ficam por seguir, de página em página, descortinando os veios por
onde flui a inexaurível seiva poética de Carla Furtado Ribeiro. Infelizmente, o
imperioso tempo suspende-nos. O leitor que se aventurar por estas páginas
encontrará muitos outros fios temáticos. Sejam reflexões sobre a própria construção
poética:
De
palavras me visto
de
poemas me invento;
e sobre o valor da poesia, comparada amiúde
ao ouro:
Desperta
desse frio de ternura
E
renasce de candura
…
existir é brando
…viver
é puro
E
eu sou
A
que no mundo
Transfiguro
O
pó de nada ser
No
ouro precioso
Das
manhãs
sejam reflexões de caráter existencial,
como o fluir inexorável mas ilusório do tempo:
não
ver senão
o
tempo fluir
a
enganar
a
vida na ilusão
de
que o tempo passa
quando
o certo, certo
é
que és tu
amor
o
ser que passa…
não
a vida
jamais a vida
a
vida não…
ou,
noutro lugar:
Sucedem-se os dias como colinas
áridas
no
desafio da exaustiva caminhada
Não
te deixes erodir pela corrosão do vento,
Pois
nem o tempo ilude a eternidade
[…]
Tu
é que passas pelo tempo e não o tempo que passa…
e ainda:
Em
cada ser
existe
um rosto parado contra o tempo
rosto
que procura esquecimento
seja o tema do amor, tratado com uma
elevação e um equilíbrio difícil de alcançar, evitando quer o sentimentalismo
patético quer o racionalismo apático.
Tomemos como exemplo um excerto:
O teu rosto adormecido sobre o meu
As tuas mãos abandonadas sobre mim
E nos meus olhos a beleza dos
caminhos
Que juntos vamos caminhando até ao
fim.
Estrelas ardentes flutuam no meu
peito
Sinto-me noite, uma noite funda
assim
Como a corrente de água limpa que
transborda
Dessa nascente cristalina que há em
ti.
Ah! À nossa beira amor cresceram
flores
Plantadas pelas nossas próprias
mãos
O teu rosto de homem novo semeou
O que na minha lua fértil se fez
pão.
Transversal a toda a
obra, a presença de Deus, não apenas no tom orante de certos poemas, mas também
na herança rítmica própria de cadências salmódicas, como se pode sentir nos
seguintes exemplos:
Ele contempla
o meu mistério
Eu
para ele não
sou uma aparência
Sou
uma aparição
Ele
vê-me na neblina difusa
Que
emana do mais puro de mim
Ele
dobra-se para me ver
Como
quem encosta o rosto
À
terra para entender
E
deixa-se penetrar
Pelo
meu olhar
Compenetrante
Ele
faz-me sentir olhada
Na
representação simbólica de mim
E
é por isso, penso,
Que
me nascem
Vontades
incontidas
De
lhe falar
De
coisas
Belas
assim
No segundo exemplo, que
agora apresentamos, Deus é visto como a suprema poesia, uma poesia capaz de nos
abrir à eterna novidade do mundo.
Meu
Deus, onde estás?
Pergunto e, de súbito,
Das entranhas da terra,
Nasces em respostas,
E
um vento intempestivo
Brande todo o ar da terra.
Sempre sei onde estás…
No fluir das gotas de orvalho
Que telintam pelas heras vicejantes
Em melífluas manhãs de Primavera…
Na dureza das pedras, feridas de
musgo,
De verde ensanguentadas…
No lazúli do céu em gloriosos dias
de sol…
No templo de comunhão do círculo de
vida…
Como não te ver? Como não te tocar?
Se estás entranhado no mundo (como
na minha alma…)
Quando eu morrer, sobrevive-me.
E que os Homens, tal como a noite,
o dia, a manhã, os desertos,
Os mares, as essências elementares
– ar, terra, água, fogo –
Jamais Te esqueçam.
E que sejam para sempre iluminados
Pela suprema poesia de existires.
Concluímos esta
apresentação com um dos três poemas que deste livro foram selecionados para uma
Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea, facto só por si bastante
revelador da inegável qualidade poética da autora. Falamos do admirável Tu minha árvore sem nome, o qual encerra
em si a quintessência de todas as qualidades cromáticas, fónicas (atente-se à
aliteração), rítmicas e semânticas que atribuímos à obra de Carla Furtado
Ribeiro.
Tu
minha
árvore sem nome, história sem tempo
meu
leito de abandono e deserção,
Raiz
Adventícia
da esplendorosa Primavera em gestação.
Folha
seminal,
trifoliada, oval, orbicular, lobada,
folha
de ouro, herança de à terra vinculada.
Âmago
de
todas as luminescências que me habitam
crepúsculos
incandescentes, impossíveis que me invitam.
mas,
tu, agora gota, agora água, agora arco-íris diluído
em mágoa,
agora água-régia
que embriaga e dissolve em aquarelísticas imagens
esta
paz cruciforme das paisagens.
Recantos
de
pureza inesperada, são teu berço, teu braço,
teu insólito regaço,
meu céu debutante e sem cansaço.
Oh
natureza curvilínea,
de
cíclicos e solenes retornos sobre a terra!
Só
tu,
sempre
estas águas, mansamente debruçadas
sobre
minhas esquivas margens escarpadas…
Coimbra, 25 de Outubro de 2013
Martinho Tomé Martins Soares
Mestre e Doutorado em Poética e Hermenêutica
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e
Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e
Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
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